A Casa de Maurício I Het Mauritshuis (3)
Além do inventário não intencional feito por De Hennin, dispomos de outras fontes que, apesar de serem parciais, mais ou menos completam o inventário da Mauritshuis. Além das doações conhecidas, existem vários quadros que representam partes da casa aristocrática daquela época. O pintor Jan van Kessel (o Velho), por exemplo, pintou o famoso quadro América – Paraíba e Brasil. Na verdade, é uma composição de quadros: além do grande quadro central há vários quadros menores ‘cercando’ o painel central.
Jan van Kessel (O Velho) 1626-1679 I Paraíba-Brasil (1666) I Alte Pinakothek Munique
Os quadros menores são inspirados nos quadros de Eckhout e os animais representados têm sua origem na História Naturalis Brasiliae, de Georg Markgraf. Ambos faziam parte da comitiva de João Maurício, no Brasil.
Sabemos ainda que no primeiro andar do palacete havia uma parede inteiramente tomada por quadros representando governantes europeus: reis e rainhas, bem como quadros dos principais governantes gregos e romanos. Após a morte de João Maurício, todos estes quadros foram, provavelmente, transferidos para Siegen.
Documentos mostram que o tecelão Maximiliaen van der Gucht, da cidade de Delft, assinou em 1667 uma declaração que comprova ter recebido uma grande quantidade de quadros de João Maurício para servir de modelo para tecer tapeçarias para ornamentar paredes. João Maurício atuou como intermediário do pedido feito pelo Grande Eleitor de Brandenburgo. Há uma relação precisa dos quadros grandes que, obviamente, vieram da Mauritshuis. Os tapetes efetivamente chegaram às mãos de quem os encomendou, mas desapareceram misteriosamente. Os tapetes menores que João Maurício tinha encomendado foram herdados por Wilhelm Moritz von Nassau-Siegen, mas foram destruídos por um incêndio no castelo do mesmo em 1695. Wilhelm era primo de João Maurício, que o considerava como filho adotivo, e morou vários anos na Mauritshuis.
Estocolmo, 1924. Durante um congresso internacional, o diretor do arquivo da família real da Holanda revela, durante uma palestra, que ele havia descoberto um maço de cartas de João Maurício, enviadas à corte francesa. A correspondência, iniciada em dezembro de 1678, tratava da possibilidade de João Maurício fazer uma doação de quadros sobre Brasil ao rei francês Luiz XIV, o ‘Rei Sol’.
Os quadros em questão eram obras pintadas por Albert Eckhout e Frans Post. “Seria lamentável que, após a minha morte, os quadros caíssem em outras mãos que não as do rei.” Interessante observar que, antes de doar, João Maurício pesquisou a receptividade, a disposição de receber tal doação. O seu agente financeiro, Jacob Cohen, coordenava esta correspondência. O mesmo tinha sido contratado para pôr ordem na desastrosa situação financeira de João Maurício: contas em atraso, hipoteca pesada em cima da Mauritshuis, quadros, joias e pedras preciosas em casa de penhores etc. Além disso, havia a questão do litígio entre João Maurício e a Companhia das Índias Ocidentais: João Maurício achava que tinha um crédito de 150.000 florins a receber pelo período em que ele esteve no Brasil.
A ‘doação’ que ele pretendia fazer ao rei francês talvez tenha sido uma tentativa para receber uma vultosa recompensa, desta maneira aliviando sua situação financeira. De qualquer forma, Jacob Cohen sugeriu que, na proposta da doação, poderia se pedir ao representante do governo francês o valor de “100.000 Croonen (coroas?) ou um pouco menos”, o que “diante de um Rei tão poderoso, é pouco.” Cohen continua fantasiando: “Se o embaixador Colbert pedir ao seu irmão (ministro de finanças), não tenho dúvidas que isto poderá render um belo saco de ‘Luisen’” (‘Louis d’or’: a moeda de ouro da França).
A época da doação parece estranha, pois a guerra entre a França e Holanda (1672-1678) mal tinha terminado. João Maurício, por outro lado, numa carta dirigida a um diplomata francês, em junho de 1678, revela que “há 20 anos que guardo uns quarenta quadros” para dar de presente, mas que “nunca teve tempo de levá-los pessoalmente.” Alguns historiadores são de opinião que esta afirmação é fingimento e acham que a doação tinha objetivos políticos: de um lado, reafirmar a boa vontade de estabelecer uma paz duradoura e, por outro lado, uma demonstração particular de João Maurício de querer ‘aparecer’ e mostrar sua importância política e cultural.
O mordomo da casa e Cohen recebem a ordem de João Maurício de preparar a doação. A grande maioria dos quadros, porém, se encontrava no sótão da Mauritshuis, guardados sem moldura em caixas compridas. Há quadros enrolados e outros dobrados, fazendo com que tivessem sido danificados pelas dobras na tela e perda de tinta. Cohen foi à procura de um pintor que pudesse restaurar os quadros. Encontrou, em Amsterdã, Jacobus de Lange: “uma pessoa confiável, solteiro, não mundano, não bebe nem se interessa por mulheres e se ocupa somente com o aperfeiçoamento de sua habilidade de pintor”.
No início de dezembro de 1678, a restauração está em pleno andamento. As telas foram desenroladas e colocadas no piso do palacete para serem tratadas. Para surpresa de Cohen, alguns quadros tinham o brasão de João Maurício, pois ele achava que tinham sido doados ao Grande Eleitor de Brandenburgo. Eram as telas que tinham servido de modelo para as tapeçarias. Ou João Maurício desconversou da relação destes quadros e as tapeçarias, ou realmente pensou que os quadros apenas tinham servido de modelo e tinham retornado ao lugar de origem. Chama a atenção que, neste período, João Maurício evitou qualquer contato com a corte de Brandenburgo e somente tratou desta doação com os franceses em Haia. Consciência pesada?
Em 30 de janeiro de 1679, João Maurício recebe uma carta da corte francesa comunicando que o rei aceitará com grande prazer a doação, lamentando que o próprio João Maurício não esteja em condições de saúde para lhe dar a descrição de cada quadro. João Maurício tenta procurar alguém que esteve com ele no Brasil, mas “todos já morreram e Frans Post, que ainda está vivo, é incapaz, pois está permanentemente bêbado.” A carta definitiva, confirmando a doação, vem no dia 14 de junho de 1679, com orientações sobre a maneira do transporte. João Maurício agradece o rei Luiz XIV pela disposição de receber “tão insignificante e desinteressado presente que vai servir para dar mais conhecimento ao Novo Mundo, a saber, o Brasil, considerado a mais bela parte da terra.” Em outra carta, João Maurício já havia escrito que o rei poderia “conhecer o Brasil sem atravessar o oceano”.
Três pessoas vão acompanhar o transporte: o pintor Paul de Milly, o camareiro Franz de Witt e o jardineiro Arnold Nicolai. Este último, sem saber falar uma única palavra de francês, vai junto para explicar como se faz transplantes e enxerto de árvores. João Maurício se gabava de ter plantado na África, no Brasil e na Europa mais de 400.000 árvores e quer ensinar ao rei como fazer. (A palavra ecologia nem existia ainda!!).
O embaixador Colbert, retornando para França, vai acompanhar o transporte dos quadros e mais algumas curiosidades. Os quadros se encontravam neste momento em Cleves e, por terra, foram transportados para Nimega (Nijmegen). As seis caixas são carregadas num barco com destino a Roterdã. Por causa do mau tempo, o barco inicia a viagem por mar em 31 de julho de 1679, chegando a Rouen, na boca do rio Sena, no dia 6 de agosto. As caixas são transferidas para barcos menores e chegam finalmente no Louvre. em Paris. no dia 14 de agosto. Logo em seguida começam a formar-se grandes grupos para admirar a doação de João Maurício. Paul de Milly escreve que, particularmente, os cavalos-marinhos, os papagaios e os marsupiais chamaram a atenção. Alguns visitantes duvidaram da existência destes animais, mas o irmão do rei Luiz XIV comprovou, através de um livro de desenhos, que estes animais realmente existem.
Tapeçaria das Antigas Índias
No dia 7 de setembro, Luiz XIV manda uma carta agradecendo João Maurício e expressa a vontade de ficar mais um tempo com o jardineiro. para que este possa mostrar suas habilidades. João Maurício manda uma cópia da carta a Cohen que, rapidamente, a multiplica e faz distribuir entre as pessoas mais importantes para “honra da sua alteza.” Desta maneira, Cohen acredita que aumentará a “credibilidade e respeito” de João Maurício. E ainda acrescenta: ”agora espero que alguns milhares de ‘Louis d’or’ seguirão.” Mas as únicas ‘Louis d’or’ recebidas foram as trezentas que o rei doou aos três acompanhantes do presente.
Em 5 de dezembro de 1679, pouco antes de morrer e já incapaz de escrever, João Maurício ditou uma carta a um membro conhecido dele na corte francesa, dizendo que “o presente que ele espera não seja em joias, mas em dinheiro vivo”.
Várias cartas de João Maurício já tinham sugerido que as pinturas (em quadros e cartões) poderiam servir de modelo para tapeçarias que ornamentariam as paredes dos enormes salões dos palácios do rei Luiz XIV. O ateliê Gobelin teceu, entre 1687 e 1730, a primeira série de tapeçarias que mediam nada menos que 4,70 metros de altura. De tanto manusear os cartões com desenhos de Eckhout, os mesmos quase se esfarelaram e, em 1735, foram feitos novos cartões. De 1737 até 1741, foram feitas novas tapeçarias com certas modificações em composição e figuras.
Tapeçarias ‘Antigas Índias – Fabricação do Royale des Gobelins, atelier Etienne Le Blond, a partir de desenhos de Albert Eckhout, 1708-1710, lã e seda, Valletta, Malta, Câmara da Tapeçaria, Palácio do Grão-Mestre – Cortesia de Heritage Malta/Daniel Cilia
A altura destas tapeçarias era de 3,50 metros, recebendo o nome de ‘Novas Índias’ e a série de dimensões maiores recebeu o nome de ‘As Antigas Índias’.
Este artigo foi escrito por Johan Scheffer e publicado pela ACBH na revista De Regenboog nº 278 maio 2022.
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