Mãe
Por Gilberto de Geus
Minha família era composta pelo pai Arie de Geus, mãe Jacoba Vriesman de Geus, minhas duas irmãs Janete e Cornelia, meu irmão Leonardoari e eu como caçula. Família pequena para os padrões da época. Embora pequena, não faltava o que há de mais humano – o amor. O casal era reconhecidamente amoroso e não faltava a dedicação para com os filhos. Eram diferentes entre si, antagônicos mesmo. Enquanto meu pai era sempre sereno, muito calmo, caseiro, humilde e um agregador tal qual o pai dele, sempre ajudando a resolver ou contornar os problemas da família dele, assim como os da comunidade, representou os interesses de Carambeí junto à prefeitura de Castro, foi desde inspetor de quarteirão até subprefeito do distrito Carambeí. Já minha mãe era vaidosa, gostava muito de passear, um dos passeios preferidos era ir a Ponta Grossa para assistir filmes; outros passeios eram os encontros das senhoras, cultos dominicais, festas nas casas dos parentes (que eram muitas, meu pai com 12 irmãos e ela com 4), ou seja, o que o pai tinha de caseiro ela tinha de passeadeira.
Pequenas brigas às vezes aconteciam, pois meu pai trabalhava na Cooperativa de Laticínios e nos finais de semana sua vontade era de ficar longe das pessoas e próximo à sua família. Minha mãe, ao contrário, passava a semana com os trabalhos domésticos, nem pensava em ficar em casa nos finais de semana. Estes enfrentamentos sempre eram vencidos pela Jacoba.
Mamãe era o coração da família, o que é absolutamente normal quando falamos em europeus onde fundamentalmente as famílias são matriarcais. Mas não apenas por ser de origem europeia que ela era o coração e sim por motivos muito maiores. Sua principal virtude era a extrema facilidade de conquistar as pessoas com seu jeito “sapeca” de ser. Ela transbordava simpatia e nos tratava como reis e rainhas, abrindo mão de satisfazer os seus caprichos para satisfazer os nossos, principalmente durante o período das vacas magras, gastando o que tinha com os filhos. Que falta faz a mamãe!
Como eu era o caçula, meus irmãos sempre achavam que eu era o mais adulado, pura inveja branca de irmão. Que nada, minha mãe e eu só tínhamos um relacionamento muito forte tipo “cordão umbilical” mesmo. Lembro que quando chegava da escola, isso com 8 anos, a primeira coisa que fazia ao chegar em casa era gritar: “Mãããããee”. E longos segundos até eu ouvir a resposta – “Estou aquiii”. Num só pulo eu largava minha mochila, trocava de roupa e ia brincar. Mas era desesperador quando eu não ouvia esta resposta. Meu coração acelerava, corria pela casa assustado, e fulo da vida procurava meu pai na chácara para saber onde estava a mamãe. Não brincava, me fechava no quarto até ouvir a voz dela dizendo – “filho cheguei”. Descia correndo a escada para um abraço, não sem antes fazer aquele “bico” característico de um filho abandonado e dar uma “bronca” nela, e corria para fora para aproveitar o tempinho que ainda tinha para brincar.
Minha história com a mãe não tem um final feliz. E pelo fim da nossa história literalmente briguei com Deus, em quem tive que descarregar toda minha tristeza. E perguntar para Ele: Por que a nossa família tinha que passar por isso?
Quando completei 12 anos notei que meus pais viajavam muito para São Paulo. “Como eles viajam” – pensava eu. Sei que minha mãe gosta de passear, mas para que tantas viagens?
Tentei averiguar com eles e com meus irmãos e não conseguia obter respostas claras. Assim comecei a perceber que a minha família começava, a meu ver, ficar diferente das outras e eu não conseguia entender o porquê. Minhas irmãs foram estudar num colégio interno (no Instituto Cristão que ficava na cidade vizinha de Castro) saíam na segunda de manhã e voltavam na sexta-feira, mas agora com essas viagens deles elas nem no final de semana retornavam. Meu irmão com seus 14 anos tomava conta, como gente grande, dos afazeres da chácara substituindo meu pai. Eu não parava em casa, pois em cada viagem deles ia pousar na casa da irmã do meu pai, nossa vizinha “tante” Tony. Quando do meu 12º aniversário meus pais nem estavam, foi o primeiro aniversário que passei sem eles. Sempre perguntando aos que estavam ao meu redor o que estava acontecendo, porque meus pais viajam tanto? Ninguém dava uma resposta satisfatória.
Depois que completei os 12 anos, sem festinha e sem meus pais, eles retornaram de viagem. Eu corri muito para encontrar minha mãe, pulei para abraçar e quase caímos. Assustei-me com isso, meu pai me deu uma bronca. Olhei para a mãe e vi que ela tinha emagrecido, sua face arredondada secou, sua cor rosada passou para um amarelo palha, mas seus olhos, ah seus olhos, verteram lágrimas quando nos agarramos num longo abraço. Eu com absurda saudade do colinho da mãe fui afastado de leve pelo meu pai que pediu calma para que pudéssemos entrar em casa, sentar e daí sim desfrutar do colo envolvente que só as mães tem. Como criança não entendia porque meu pai me impediu de agarrar minha mãe, achei que talvez estivesse com ciúmes. Quanta bobagem podem conter nossos pensamentos egocêntricos! Já que o pai não me deixava subir no colo da mãe, esperei que ele saísse de casa para ver como meu irmão estava conduzindo a chácara e voei no colo dela. Ela gemeu, olhei assustado e vi estampado em seu rosto uma dor profunda, as lágrimas verteram, mas a saudade era tão grande que o nosso encontro deve ter funcionado como um anestésico para sua enorme dor. Então aproveitei e perguntei a ela – “O que está acontecendo com a senhora mãe?”. Ela respondeu – “Filho, a mãe está doente, muito doente. As viagens que temos feito a São Paulo são para um tratamento”. Quando perguntei- “A senhora vai morrer?”, tive uma resposta tranquilizadora – “Estou indo até São Paulo justamente para me curar, lá os médicos têm mais condições para obterem minha cura”.
Mais um ano se passou e os dois viajavam constantemente. Agora sabendo o que iam fazer, eu aprovava as viagens, pois qualquer sacrifício valeria a pena para manter nossa mãe conosco. No ano de 1969 a doença da mamãe não regrediu, ao contrário, o estado de saúde dela piorou muito. Lembro que ela tinha muitas dores e recebia uma injeção à base de morfina por dia para aliviar seu sofrimento. Semanas se passavam e os intervalos entre as injeções diminuíam, agora eram de 12 em 12 horas e logo foram de 6 em 6. Neste período minhas irmãs Janete e Cornelia assumiram as tarefas da casa, pois minha mãe mal conseguia manter-se em pé.
Nesta fase das altas doses de opiáceos, ela falava que a dor diminuía quando ouvia o som da minha flauta doce (eu havia recebido aulas da mevrouw Boot) e o que ela mais gostava de ouvir eram os hinos da igreja. Ela me contava que o som da flauta soava tão doce nos ouvidos que parecia que os anjos do céu desciam para levar as suas dores. Nossa querida mãe estava acometida de uma terrível doença, e o nome deste mal nunca me foi dita enquanto ela ainda brigava pela vida. Uma doença terrível, que aos poucos desfigura o ser humano e lhe destrói o corpo, trazendo no seu rastro um sofrimento incalculável para o doente e sua família. Alguns meses se passaram, e a nossa mãe estava com o corpo e o rosto todo desfigurado. Na minha inocência fazia perguntas para ver se alguém podia me explicar o que estava acontecendo com ela. Não recebia respostas convincentes. Diziam que logo ela estaria saudável novamente, e que íamos passar muito tempo juntos. Muitas vezes encontrei meu pai chorando baixinho, para que ninguém ouvisse. Quando me deparava com ele naquela situação ele me dizia – “Filho, entrou um cisco no meu olho”, e me pedia para ajudar a retirar o cisco. Bendito cisco que eu não conseguia achar.
Em 11 de novembro de 1969 nossa casa foi invadida pelos meus tios e tias, eu não estava entendendo nada, por que todos estavam ali? Não é aniversário de ninguém. Por que eu não podia entrar no quarto da minha mãe para tocar alguns hinos para ela? Notei que agora não era só o meu pai que estava com cisco nos olhos. Às 11h da manhã o tio meester Sijpkes veio falar comigo e com meu irmão. Nós estávamos sentados na calçada que circundava a casa quando ele falou- “Leen e Gijs, a mãe de vocês acabou de falecer. Ela foi para o céu!” – “Para onde?”, eu perguntei. “Sua mãe morreu, ela foi se encontrar com Deus”. “Mas vocês me disseram que ela ia ficar boa e que nos íamos ter muito tempo juntos!”. “Vocês mentiram!” Lembro de todos chorando e me veio a ideia que todos eram traidores. Todos me enganaram. Minha mãe chegava ao fim de sua vida com 39 anos.
Semanas depois do enterro fui convidado pelos primos para fazer um piquenique. Na volta, andando para nossas casas, um deles me disse que minha mãe havia morrido de câncer. E que câncer é uma doença incurável. Então por que não me contaram? Por que me enganaram sobre o futuro da minha mãe e da minha família? Custei a entender os motivos e os fatos. Perdoei a todos, mas a pergunta que ficou foi: “Será que não é melhor revelar a verdade nestes casos e preparar os pequenos para a realidade da vida?”
Depois de perdermos nossa mãe, o coração da família, me deparava com filhos que brigavam com suas mães e isso me doía muito, aliás, me dói muito ainda, – tolos, mal sabem a falta que faz uma mãe.