Aventuras do meu avô materno, Cornelio Vriesman
Por Gilberto de Geus
O que vocês vão ler aqui são histórias que estão na minha memória, e que meu avô contava para nós. Ficávamos todos ao redor do fogão a lenha, onde sempre havia uma chaleira com água fervendo para fazer um café para ser servido aos visitantes. Muitas vezes havia pinhões que sapecavam para serem consumidos durante os contos e no forno pães caseiros fresquinhos ou então uma “rolada” (carne de porco enrolada temperada).
Meu avô era um bom contador de histórias, sabia prender nossa atenção, relatava em detalhes e nossa imaginação viajava com ele.
Lá pelos anos de 1920, devido às poucas oportunidades de se ganhar dinheiro na recém Colônia de Carambeí, meu avô resolveu que iria se mudar para a vizinha cidade de Castro. Achou um serviço de condutor de carroça entre a cidade de Castro e Tibagi. Era uma enorme carroça puxada por uma parelha de quatro cavalos. A carroça era coberta por uma lona (tipo aquelas do faroeste americano). Assim ele conseguiu seu primeiro frete, constituído por mantimentos (açúcar, sal, farinha, arroz), sementes ( feijão, milho e verduras), tecidos, ferragens , medicamentos e demais produtos que serviriam para abastecer os armazéns da pequena cidade de Tibagi.
A estrada para Tibagi – que não era uma estrada, mas sim uma trilha por onde os fazendeiros enviavam o seu gado na forma de comitivas para serem vendidos em São Paulo – era muito precária, com vários atoleiros, rios, riachos, campos pedregosos e subidas íngremes. Era considerada uma estrada perigosa, com vários pontos críticos para assaltos. Meu avô recebeu uma espingarda de um tiro só, que, se fosse usada, teria que ser carregada manualmente, o que levava alguns minutos.
Carga pronta, espingarda carregada, meu avô saiu para sua viagem rumo a Tibagi.Como era sua primeira viagem ele pôde contar com a companhia de um condutor responsável em mostrar o caminho. E lá foram eles para Tibagi, madrugaram e pegaram a estrada, a viagem durou três dias e duas noites. Chegaram em Tibagi e distribuíram as mercadorias. Para surpresa do meu avô o pernoite deles seria numa delegacia. Estranhou, mas aceitou de bom grado o pouso gratuito. Mal sabia ele que o pouso gratuito devia-se à carga de retorno, que era de dois presos devidamente engaiolados e trancafiados em cima da carroça. Tibagi não tinha uma cadeia então os presos ficavam trancados por pouco tempo e levados para Castro para serem julgados, condenados e devidamente engaiolados.
As viagens do meu avô tornaram-se constantes e quase sempre sozinho – ele e sua carabina de um tiro. Numa dessas idas para Tibagi, na chamada serrinha, a tal subida íngreme, foi abordado por algumas pessoas, armadas de foices e facões. Pronto, lá estava ele, de frente com os assaltantes e só um tiro poderia ser disparado. Avaliou e resolveu negociar, pedindo o que eles queriam. Parece estranho perguntar o que os assaltantes querem. Falou para eles que não levava dinheiro e que levava comida, ferragens, sementes, medicamentos, etc. Um dos assaltantes falou que eles não iam fazer nenhum mal, mas que eles estavam precisando de remédios, pois no lugar onde eles moravam não havia muitas ervas medicinais, e que estavam precisando de sementes de milho e feijão, pois a safra tinha se perdido devido a uma enchente e que as pessoas estavam morrendo de fome e doenças, e que não tinham dinheiro para comprar remédios e comida. Aí meu avô viu a oportunidade de se sair menos mal deste assalto.
Desceu da carroça, e começou uma conversa com os assaltantes, que eram pessoas de bem, estavam diante de tantas dificuldades que não lhes restava outra coisa senão assaltar um viajante para obter o mínimo necessário para sobreviverem.
Meu avô viu que estavam num estado critico de subsistência e lhes deu os remédios, as sementes e um saco de sal. E combinou com eles que deixariam ele ir com o restante. Assim combinado, assim realizado. Daí em diante nunca mais precisou viajar só, sempre tinha um guarda devidamente armado defendendo a ele e a sua carga.
Numa outra viagem teve que ir até Curiúva, adiante muitos quilômetros de Tibagi. Um fazendeiro encomendou uma carga muito grande de sementes. Carregaram na estação ferroviária de Castro as sementes e saíram para Curiúva via Tibagi; a viagem aumentou em dois dias. Cansados, depois de cinco dias chegaram à fazenda, meu avô estranhou que na porteira havia dois peões armados até os dentes. Depois de se identificar abriram a porteira e deixaram-no passar. Chegando na fazenda viu que no pátio central dela havia um tronco e nele dois negros presos e com as costas todas feridas. Dirigiu sua carroça até o depósito e logo vários negros vieram e descarregaram sua carroça. Depois de conferir a carga aparece um senhor, de roupas finas, barba e bigode, um chapéu enorme e acertaram o frete mais a carga. Como já estava para anoitecer o fazendeiro lhe ofereceu comida e lugar para o pouso. Comeu, bebeu e dormiu entre os negros da fazenda que se amontoavam em um paiol com mínimas condições de sobrevivência. Durante a noite falou com uma das pessoas que lhe relatou que se tratava de escravos (120 no total). Boquiaberto meu avô não soube o que dizer, muito menos o que fazer. Na manhã seguinte tomou café com escravos e pôs a carroça na estrada. Na saída os dois peões cercaram a carroça e falaram: “ Se você qué continuá vivo, é mior não comentá o que viu aqui”. Meu avô chacoalhou a cabeça dizendo que estava de acordo. Liberaram a passagem e ele deu aquela chicotada no ar para que os cavalos andassem para irem embora daquele lugar. Pasmem, nos anos de 1920 ainda havia escravos no interior do nosso Paraná.
Voltando aos assaltantes lá da serrinha, muitos e muitos anos depois se descobriu que nos fundos da fazenda São Damásio (que fica à margem esquerda do Canyon Guartelá) havia um quilombo, e que os assaltantes eram ex-escravos que se escondiam naquela região. Ainda há vestígios de construções, cheguei a ver com os próprios olhos um casebre desfigurado pelo tempo, isso em 2005. Ninguém sabe o que aconteceu com as pessoas que habitavam lá, supõe-se que com medo dos brancos ficaram por ali e devido a fatores desconhecidos não sobreviveram.